Em briga de marido e mulher… se mete a prataria toda!
- Juliana Pimenta
- 27 de jun. de 2018
- 5 min de leitura
Em ano de Copa do Mundo invariavelmente acabamos conhecendo um pouco mais do país-sede do campeonato e, como todas sabemos, esse ano é a vez da Rússia. Mas, para além das lindas imagens da Praça Vermelha e do significativo peso histórico do país, o que muito se ouviu recentemente, impulsionado pelo comportamento deplorável de alguns torcedores, em especial brasileiros, foi como a sociedade russa lamentavelmente trata as suas mulheres.
O país da copa leva a falácia do “um tapinha não dói” a uma máxima alarmante. Na Rússia, uma mulher é assassinada a cada 40 minutos e, ainda assim, em 2017 o país descriminalizou a violência doméstica.

Além de não contarem com a proteção do Estado, que entende que a violência é permitida contanto que não deixe marcas, nem sequelas, as mulheres russas chegam até a ser condenadas à cadeia caso lesionem o agressor, ainda que em legítima defesa. Quando o ofensor enfim é condenado, a pena prevista não passa de uma multa, que é paga pela poupança da família. Assim, no fim das contas, não é de todo errado afirmar que a mulher russa acaba, de certa forma, pagando parte da pena da própria violência sofrida. Isso tudo é, no mínimo, um absurdo, além de extremamente machista.
E no Brasil?
Nas terras tupiniquins, por mais que o machismo ainda impere na sociedade, a situação da mulher vítima de violência doméstica e familiar é um tanto melhor se comparada à vivenciada pelas mulheres russas - e isso muito graças àquela que ficou conhecida como a Lei Maria da Penha, qual seja, a Lei nº 11.340, de 2006. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm).
A Lei resultou da condenação do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pelo sistemático descaso do Estado brasileiro não só no caso da vítima Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu duas tentativas de feminicídio praticadas por seu então marido, sendo a segunda quando já estava paraplégica em razão da primeira, mas também com relação a todo o trato da violência doméstica nos lares brasileiros. No tangente à violência contra a mulher, o Brasil foi então taxado de negligente, omisso e tolerante.
Considerada pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha penalizou a violência doméstica e familiar tanto nas relações entre homem e mulher, como nas relações homoafetivas femininas, e também possibilitou as prisões em flagrante e preventiva do agressor, o que teve reflexos positivos na sociedade, como a diminuição do número de homicídios domésticos e o aumento no número de denúncias. Além disso, a Lei também impulsionou a ampliação da rede social de proteção à mulher, que hoje abarca programas e iniciativas de órgãos públicos e da sociedade civil.
Mas para que as mulheres tenham acesso à proteção que fazem jus, primeiramente é importante que elas tenham consciência da violência que sofrem, pois muitas vezes as agressões de natureza mais gravosa não acontecem repentinamente, mas são resultado de pequenas agressões frequentes e crescentes às quais a mulher é submetida. Conhecer o denominado “ciclo da violência” é, portanto, de grande valia para a autopreservação feminina.
O “Ciclo da Violência Doméstica”
A teoria do Ciclo da Violência Doméstica foi criada pela psicóloga norte-americana Leonor Walker, que, trabalhando com mulheres vítimas, concluiu que as agressões não ocorriam da mesma maneira e nem o tempo todo, mas que obedeciam a um padrão similar e cíclico de comportamento, dividido em três fases.
Fato é que o referido ciclo acontece com muito mais frequência do que podemos imaginar, sendo certo que com a escalada da violência os intervalos entre as fases tendem a diminuir ou até mesmo a serem suprimidos por agressões contínuas e ininterruptas. Como informação liberta e empodera, vamos então conhecer as três fases do ciclo:
Fase 1: evolução da tensão
Aqui se inicia o calvário da vítima, uma vez que o agressor começa a demonstrar sua tensão e irritação por pequenas coisas. Ocorrem xingamentos, humilhações e destruição de objetos. A vítima muitas vezes se culpa pelo comportamento do ofensor e busca justificativas para tal, podendo até mesmo entrar em estado de negação.
Fase 2: explosão
Quando a tensão do agressor atinge o ápice, ocorre o descontrole e iniciam-se as agressões físicas e verbais. A mulher pode se sentir paralisada, chegando até mesmo a crer na impossibilidade de reação, mas muitas vezes é nessa fase que a vítima procura ajuda, se esconde na casa de parentes/amigos, pensa em se separar e, em casos extremos, em ceifar a própria vida como forma de escapar da violência sofrida.
A dificuldade de reação é chamada de “síndrome do desamparo aprendido” e é fruto da própria situação de violência. Dessa forma, é preciso que se entenda - e aqui, especialmente quem está de fora dessa dinâmica de violência - que a demora no pedido de socorro não é sinônimo de conivência ou culpa da mulher e que a dificuldade de quebrar o ciclo realmente existe.
As mulheres vítimas de violência doméstica e familiar precisam ser incentivadas e nunca, jamais, sob hipótese alguma, serem culpabilizadas.
É importante destacar que a cada repetição do ciclo, esta fase tende a apresentar episódios cada vez mais intensos de violência, e que podem culminar na morte da mulher pelas mãos do parceiro.
Fase 3: lua de mel
Aqui temos a volta do pseudo “príncipe encantado”. Arrependido do que fez ou disse, o agressor se mostra atencioso, carinhoso e promete mudar seu comportamento “em nome do amor” ou da família... A vítima, por sua vez, acaba acreditando nas promessas de seu algoz e aposta na reconciliação. E, assim, aos poucos o casal retorna à primeira fase do ciclo, quando as violências, então, se repetem.
Fato é que ainda há muito a se melhorar com relação à proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, mas um dos direitos já conferidos é o de requerer a concessão de medidas protetivas de urgência já no momento do registro do boletim de ocorrência, sendo certo que desde abril de 2018 o descumprimento das medidas é crime (o que abre um novo mundo de consequências para quem as viola).
Por fim, vale lembrar que a mulher pode ser submetida a várias formas de violência, sendo a física apenas uma delas. Há a violência sexual, que ocorre no sexo forçado, por exemplo; a “virtual”, quando há a divulgação de fotos íntimas sem autorização, dentre outros; a moral, caracterizada por xingamentos, difamações, etc; a patrimonial, que se dá com a destruição de objetos da vítima e a psicológica, que é permeada por humilhações, ameaças, vigilância constante, controle da vida social e por aí vai ladeira abaixo…
O gaslighting, já abordado aqui no Blog pela Cris (https://www.canalsegueobaile.com.br/single-post/2018/03/15/GASLIGHTING-Voc%C3%AA-pode-n%C3%A3o-saber-o-que-%C3%A9-mas-j%C3%A1-sofreu-com-ele) e pela Rita (https://www.canalsegueobaile.com.br/single-post/2017/08/23/Somos-unidades), é, por exemplo, uma forma de violência psicológica e moral que às vezes passa despercebida, mas que não se fruta a trazer consequências para quem a sofre.
Nem toda forma de violência deixa marcas físicas, algumas são simplesmente invisíveis aos olhos e tantas outras já são tão normalizadas que são quase imperceptíveis. Ser mulher em uma sociedade desigual não é fácil (e ninguém disse que seria, não é mesmo?) e demanda uma atenção e consciência constantes do que ocorre consigo mesma e ao seu redor. Ser mulher é poder se tornar vítima daquele que amamos, sofrer pela violência e pela decepção, e muitas vezes ainda ver os dedos sendo apontados em nossa direção, como se fossemos "naturalmente culpadas" apenas por sermos mulheres. Ser mulher e ser vítima de violência doméstica é flertar com o abismo sem saber ao certo se (ou quando) irá cair. Mas, sobretudo, ser mulher hoje em dia é saber que há cada vez mais braços dispostos a nos apoiar, a nos segurar, se nos permitirmos.
Quebrar o ciclo não é fácil, mas pedir ajuda é fundamental.
Juntas somos mais fortes. <3
E segue o baile.

Saiba mais:
Cartilha “Mulher, vire a página...”, do Ministério Público de São Paulo
Relatório do Caso Maria da Penha na Comissão Interamericana de Direitos Humanos
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